domingo, 31 de janeiro de 2016

Quem é o meu corpo...


Pintura de NEUZA LADEIRA















... que tenta esconder de mim
(ou esconder-se)
alguma forma
sem forma
assim
alguma aparência
sem grito
alguma instância
sem régua
alguma dança
sem rito

Esconde sempre algo
que não tem vida
E, no entanto,
vive algo
que não está preso
em nenhum gole
nem lago
de agonia

asas mostrando-se
livres

sábado, 30 de janeiro de 2016

No tempo da linotipia















Caiu uma vírgula no chão

Responsabilidade do vento
Eu apenas cuidei
De não perder o sentido
Da frase
Cuidei para que a forma
E o conteúdo
Não fossem feridos
Pela ausência de algum sinal

A janela agrediu a parede
Ao lado dela
E a cortina, nervosa,
Derrubou o vaso de planta,
Que, por sua vez,
Deitou-se sobre o chão
De forma estúpida
E agressiva

Achei, por fim
E melhor,
Deixar a vírgula
Soterrada por este destino.

Pedi o auxílio de um travessão
Posto que a sentença
Era apositiva.
Mas, na hora de fechá-lo,
Meus dedos, por displicência,
Feriram-se em sua finura
E pingaram uma interjeição.

Ainda restavam
Alguns símbolos gráficos
Para que o sol
Não perdesse seu “s”
Nem a lua
Seu doce martírio
De dividir a noite
com estrelas.

O que doeu mais
Foi o acento grave
Que parecia ter sido extinto
Por algum gramático moderno:

Tive de colocar um espelho
Frente a frente
Com a bica de um acento agudo
Soprei o fino chapéu:
Inverteu-se a imagem
E de “á” ficou “à”

E eu, de poeta culto e erudito,
Voltei a ser criança
Voltei à escola
Não sem antes emergir uma ilha
Com vários travessões

Resgatar a vírgula
Debaixo dos escombros
De uma gramática
Muito mal reconhecida
Pelas próprias línguas
Que a criaram
(ou deveriam...)

Fechar a janela
Ajeitar a cortina
E sustentar firme,
Para acabar este poema,
Num ponto final
Era tudo que
O codinome
Das quatro paredes
Me pediam
Para não esquecer

De sonhar
Que um dia
só os dedos dos homens
poderiam acender
ou apagar

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Para quem ama as coisas...
















... tais como são
em seu momento de paixão,
só o tempo passa,
essas coisas, não

Para quem ama as rosas
tais como são
em sua história de polinização,
só o tempo se distrai
essas rosas, não

Para quem ama as rochas
tais como são
em sua película de erosão,
só o tempo se trai,
essas rochas, não.

Para quem ama as moças
tais como são
em sua dança de sedução,
só o tempo cai,
essas moças, não.

Para quem ama as roças
tais como são
em seus ciclos de plantação,
só o tempo morre,
essas roças, não

Para quem ama as rezas
tais como são
em seu jeito fino de oração
só o tempo chora,
as rezas, não

Para quem vive a vida
como ela é
em seu instante de fé,
só o tempo passa,
a vida continua em pé

Para quem canta um canto
como ele é
em seu ritmo de difusão,
só o tempo passa
e fica, em sua essência,
no coração

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Meia-noite


Modesta homenagem a Iyalorixá do candomblé do Rio de Janeiro Mãe Giselle de Iemanjá. Filha de santo de Joãozinho da Goméia, iniciada para o Orixá Iemanjá, antropóloga e escritora franco-brasileira, cuja história (https://pt.wikipedia.org/wiki/Giselle_Cossard) confunde-se com a história do Universo.
... não é hora
nem meia hora
nem meia-noite e meia
apenas meia-noite
inteira

a hora
de ser sentida
por cada um
como um pássaro
em pleno voo
de vida

deita-se
sobre seus olhos
a agudeza
dos arqueiros benignos
marcando o tempo
com o mistério da noite
para os que não morrem
porque viveram
para sementes
raízes
e germinações

Não morrem,
apenas acordam
ao despertar o Universo
dentro de si

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Quando a gente perde













É melhor não
Se sentir perdido
Muito menos derrotado

Não só
Pelo fato da dor
Poder se transformar
Quando o ser
É mais forte
Que a sua forma
De estar

E, sim, porque
O adversário
Ganharia mais ainda
Se pudesse fazer
De cada de nós
Além de derrotados
Ou simplesmente
Vencidos
Nos ver consolidados
Como vencíveis

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Os homens que morrem sozinhos...











... morrem porque estão sozinhos
Porque viveram sozinhos
Porque nasceram sozinhos
Porque escolheram
(conscientemente)
morrerem sozinhos(?)

Poderá haver consciência
Para a morte solitária
Ou toda morte
É inconsciente,
Mesmo que apedrejada
Mesmo que assaltada
Mesmo que esfomeada?

Morrer de morte matada?!
Morrer de morte morrida?!

Morrer de morte achada!?
Morrer de morte perdida!?

Morrer de morte sonhada?!
Morrer de morte em vida?!

Os homens que morrem sozinhos
(leia-se “homens cidadãos
alheios aos modernos
hitleres, títeres
que comovem apenas
aos que morrem
em seus confortáveis
sofás)
morrerão com as multidões
mesmo em silêncio
mesmo sem ir para as ruas
mesmo não achando nada
do que lhes diz
todas as fases da Lua?

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Muitas vezes...











... quando se aprende
a amar
o amor fica
diferente
o amor não
aguarda
definições
o amor não
espera
tentações

Houve um tempo
Em que só
Havia um amor:
Para o lar

Mas vi um amor
Certa vez
Que me ocupou
O olhar
Esse amor
Era tudo que fosse
Arte em mim

O amor não se desfaz
Se transforma
E aí, mais que arte,
É Deus
Te ocupando
Com Seu olhar

teu

domingo, 24 de janeiro de 2016

Na direção do vento
(Blowing in the wing - Bob Dylan)













As palavras
São vermelhas
Quando juramento
do coração

Serão amarelas
Quando a placenta
em nascimento
é a etimologia
do peito poente

Serão elas
Palavras
Independentes
De cores
Quando dependentes
Dos amores
Rústicos ou sutis
De quem se enamora
Pela própria
Sensação de ser
o que o outro
começa a findar
dentro de seu início
de ser em si

sábado, 23 de janeiro de 2016

Invenção noturna

Brahma, Vishnu e Shiva

















O que passa por nós
de dia
Mesmo sendo
a mesma coisa
que por nós
passa
à meia-noite...

É diferente!

O que mais resta
à luz das diurnas
melancolias
do que o obscuro
da claridade
que a si mesma
nunca teria
porque sempre
cria?

E tudo que se cria
deverá ser eternamente
recriado

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Oração dessa noite...










... sem vida
(sem morte também)

Oração
Enquanto não durmo
Nem ninguém
Me espanta
Como uma mosca
Ou cão vadio

Enquanto escurece
Acompanho
Quem se arrisca
Ao delírio
De um andarilho
Ao lado
Pedindo um trocado
Como um relâmpago
inesperado

como um Deus grego
sem medo
batendo à nossa porta
em segredo
conferindo nossa
fé ou fúria

e exigindo a troca
entre o que pede
e todas as possibilidades
do que pode
uma família

de portas abertas

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Hóspede do sacrifício

















Há ternuras que ferem
Tal como a flor
Que nasce sem espinhos
Mas em meio ao precipício
Não se preocupa
com a falta de carinho
e se entrega ao ar

Há ternuras
De flores longe
Dos moinhos sem água
Com o odor
Dos que se sabem
Sem mágoa
Sem dor
Sem qualquer sombra
Porque o sol
Não tem pétalas
Mas há flores
que são girassóis

O sol tem chamas
Labaredas
Mas não tem
Rimas
Que lhe coroem
Como rei
De um céu aberto

Ante o olhar de Galileu
Deus proclama
Não haver sombra
à sua própria Luz


quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

obrigado, filho. Pelo belo pranto, pelo canto que um dia por alegria você também cantará por sentir o encanto de um filho que te fará chorar por instinto porque o amor às vezes é um espanto, tanto quanto um desalento mas nunca o momento santo onde mora, onde vive, onde eternamente eu e você estamos juntos, quando eu te ensinei e agora você me ensina pelo menos por enquanto, até chegar o dia em que o vento deixará as folhas e as flores caírem ao chão sem dor, sem tormento, tal como a flor desse instante, em que eu te amo pétala por pétala, célula por célula, com a seiva do que sinto. Do sol, a cor que nenhum pintor reconhece, a não ser que encontre em sua própria prece a manhã primeira do milagre de ser o pai que ama, o amor que lhe cai, como cada chama que o sol reclama aos seus filhos planetas, como a ti exclama meu velho coração que te olha até hoje como se ontem ainda fosse o futuro do que entendo como um homem cantando, o que outrora (até mesmo chorando) fui feliz sorrindo, como hoje te olhando rogo aos céus sejas um filho não só meu mas, principalmente, de Deus, sempre que Ele for eterno, enquanto eu apenas um sopro de vento que há vinte e cinco anos te cobre com o manto do viver, mesmo que seja o encanto deste sofrimento que é reconhecer que, apesar de muito, não sou tanto não sou tanto não sou tanto sou tanto sou tanto sou tanto sou tanto sou tanto

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Poema milenar










Quando uma mulher
escolhe um homem

seja para o que for
seja para ir
seja para voltar
seja para fuder
seja para filmar
seja para mimar
seja para mamar
seja para olhar
seja para partir
seja para ficar

Quando uma mulher
escolhe um homem

há muito deixou de pensar
há muito deixou de chorar
há muito deixou de sonhar
há muito deixou de parar
há muito deixou de...

estas coisas
ela deixou para o mundo;

para o homem
escolhido para amar
ela deixou seu mundo
com a porta aberta
embora sempre alerta
com as janelas fechadas

(pela porta
entra o corpo de sua escolha;
pela janela,
a parte que entraria
poderia ser só
fantasia
ser apenas e só
vã alegria)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Hoje...











... eu só queria sentar

Num botequim vazio

Deixar minhas palavras

Descerem pelo rio

Que se forma

Com a espuma da bebida

Que, ao longo da vida,

Eu bebi



Hoje

Eu só queria admirar

O universo em desafio

Como se os meus versos

Arranhassem um gato em cio

Transformando-se

em música sem pavio

caindo em cima de mim

em nuvens errantes

remanescentes

de outras eras


Quem sabe, hoje,

Eu poderia me tornar

Um herói de qualquer lua

Deixando um rastro

Por minha rua

De luz no escuro

Como um ser puro

Que pecou por ser

Ao ser o que é

O não ser

E perder a fé

Mas sustentar a esperança

Como uma criança

Que ainda brinca de luta

Porque a luta faz parte

Da nossa arte

De sofrer

domingo, 17 de janeiro de 2016


Mar... de quem não sabe amar...














Até hoje

Brigam Espanha e Holanda

Pelos direitos do mar

Como registrou

Em seu coração

Leila Diniz

E Milton Nascimento

Corroborou

Em sua musicalidade



Hoje

(muito mais do que só hoje)

sorriem com dentes

de leão

e caninos

pedimos perdão

aos ventos

àqueles momentos

em que deixamos

Maysa

Morrer na ponte

Rio-Niterói

E agora expandimos

Nossas propriedades

Diante do mar



(Justo o mar,

o eloquente domínio

intransponível...

Por que não invadem

E  riem territórios

E constroem casas

No mar?)

Cosmic blues!
















Para quem mora

Numa rua

A gente dá “bom dia!”



Para quem mora

Num bairro

A gente diz “olá!”



Para quem mora

Numa cidade

A gente acena de longe

E diz: “Como vai?”



Para quem mora

Num país

A gente diz “Salve!”



Para quem mora

Num planeta

A gente transpassa

A sua presença

E nada diz!

Para quem mora

dentro de nós

apenas "Olá!"

Para que morre

dentro do futuro:

"O que será?"



sábado, 16 de janeiro de 2016


O mundo em torno de si mesmo...















... ou o mundo em torno de nós?



Somos o mundo

enquanto pequenos

e socialmente

mal ajustados



Somos o mundo

enquanto humanos

e displicentemente

nos achamos

educados



Para onde nos leva

essa educação

selvagem

em sua essência?



Aonde vamos

Se nada nos leva

Além da razão

E do estranho sentimento

De inadequação

(nem para o Átomo

nem para a Via Láctea,

ambos em nossa

cabeça

girando perdidamente)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016


O sonho é uma forma de reconstruir a realidade ou a realidade é apenas a materialização dos sonhos? Será o ódio uma deformação do amor ou o ódio é uma simples descaracterização do amor? E a morte, uma degeneração da vida ou a vida uma confirmação da morte? Há quem diga que a derrota é um monumento dos fracos, mas e os que dizem ser a vitória uma escada rolante que acomoda? Um ruído pode ser a corporificação do silêncio ou é o silêncio que, em seu aparente vazio, dá aspecto de ilusão a qualquer ruído? Sendo o céu tão infinito e o mar tão profundo, qual dos dois mais se aproxima do ser humano, ou o ser humano é que tem mania de separar as coisas como pares e não íntegras?

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016


Sendo eu tanto...












... e nem sei por que tanto
sendo apenas
por enquanto
posto que meu canto
abrange apenas
eu e você...

Sendo eu pouco
Tão pouco e menos ainda
Sendo apenas teu encanto
Encontro teu sonho
Nada estranho
para assim viver
como um ponto
sem final
conto
com sol

Construo um castelo
em um barraco
Uma tempestade
em um copo
Uma gargalhada
em um simples
gole

Sou este canto
enquanto você ouve
e sonha

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016


Perdi-me...
















... em algum lugar

onde sei que me encontro

mas não reconheço



em algum momento

onde sei que me planto

mas não cresço



em alguém

onde sei que me encanto

mas não me pareço



Perdi-me

gritando aos ventos

e meu grito nada mais

que um desencontro

não o fato

em si

consumado

por ser grito

e encontrar novos

espantos



Perdi-me

E não sei onde estou

Embora reconheça

esse jeito

de caminhar

tal como sou



Perdi-me

Embora me encontre

onde sei

que há caminhos

Onde sou rei

coroado de espinhos



Cada um de nós

pode sentar num trono

Mesmo em pleno abandono

Porque não só de rimas

Vive o poeta



Reconheço onde estou

Reconheço quem sou

Reconheço meus passos

só que não onde
ou aonde



Apenas saber de onde

já é tudo

Apenas sofrer por ontem

já é quase apenas dizer:


“Não passará”

comove a ventania

de hoje

promove a fúria

do que poderá
a vitória que virá

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Viver em comunhão...












... com o sol
É manter-se distante
dele
É sacrifício quando
Ou até mesmo onde
Quem sabe

Viver sobre
e estar sob a Terra
é uma maravilha
terrível
uma voluptuosidade
incrível

Abrem-se fendas
Lendas consomem-se
Quem sabe

Muitos homens
alcançaram
o cimo da Luz
E desapareceram
para sempre

(Do ponto de vista
de quem ainda
usa relógio
por não conhecer
a sua própria
viagem)